Tenho refletido muito ultimamente sobre a qualidade que Currais Novos vem demonstrando quanto a seus escritores e poetas, principalmente os da nova geração. Há alguns dias, numa entrevista pela TV Assembléia, Nei Leandro de Castro citava as nossas queridas Maria José Gomes e Iara Carvalho como duas das melhores novidades nos últimos tempos. Constantemente, Wescley Gama é apontado nas primeiras colocações dos concursos literários que ocorrem por aí. E ainda temos Adriano dos Santos, Luma Carvalho, Adélia Daniele, entre outros. A lista cresce a cada dia, o que, para quem se permite desfrutar de uma certa sensibilidade, é um evento passível de análise e de uma importância maior.
Dois desses maravilhosos seres, Théo Alves e Marcos Leopoldo, também foram felizes em participações recentes de concursos a nível nacional. O primeiro recebeu mensão honrosa na modalidade de contos, em evento promovido pela Secretaria de Estadual de Educação do Paraná, com direito à publicação na coletânea composta pelos trabalhos selecionados; o segundo participou de um seleção de 100 textos, promovida pela Folha Dirigida, com a participação de mais 15.000 professores, cujo tema era alusivo ao Centenário de Machado de Assis. Assim como Théo, teve sua redação publicada e elevou o nome de nossa cidade, muito embora esses acontecimentos, para a maioria sem sensibilidade, não tenha muita relevância. O fato é que eles brilharam e, repetindo um clichê, "contra fatos não há argument0s". Só para registrar, fui presenteado por ambos com os dois exemplares editados pelos eventos.
Mas, apenas o registro não seria, a meu ver, uma homenagem justa. Por isso, publico a seguir os dois textos desses ilustres currais-novenses, reforçando a idéia de que precisamos olhar com mais carinho os nossos artistas. E falo isso para aqueles que têm sensibilidade. Para os outros, só posso lamentar a falta de sorte em não poder separar o que é bom do que é ruim:
Quando chegou o morto (*)
Théo Alves
O morto está chegando, o morto já vem, o menino gritou antes de passar pelo portão e imediatamente se fez o vozerio grave dos homens que cobravam as apostas. Houve quem batesse no peito e disse eu avisei, eu disse que esse nunca falha. As mulheres corriam ao redor da mesa, empilhavam velas e rosas por toda a casa e tudo murchava e ressecava, porque o calor não permitia viver. Elas se entreolhavam em silêncio, rezingavam e vez por outra sofriam, sem poder esconder a alegria de ver chegar o morto desejado.
A festa animava as crianças, que corriam de um lado a outro e se jogavam no chão sujando a roupa de domingo reservada para o cortejo. Ninguém se importa mais. A felicidade era ver que o morto chegava, finalmente. Os homens da prefeitura carregando-o nos braços também sorriam com a alegria da rua. Deitaram-no sobre a mesa, como foi pedido, e tomaram café quente com bolachas salgadas feitas ela mãe do morto. Ela lhes agradeceu recomendando a Deus as boas almas desses bons rapazes que trouxeram essa pequena alegria para esta pobre mãe sem consolo. Comovido, um dos homens disse-lhe não há de quê, senhora, seu filho é um morto exemplar.
Deitado sobre a mesa, ele brilhava como se estivesse suado. As mulheres diziam ser o sopro dos anjos e repetiam só pode ser, só pode ser o sopro dos anjos. As mulheres que o tiveram em vida estavam lá, ao redor do morto brilhoso. Os maridos aceitavam sem resmungos, mas com pontas de ciúme, essa reconciliação amorosa sem tino. Uma segurava-çhe a mão gelada e dizia surdamente que está mais lindo do que nunca, tem o vico das crianças negras e dos jambos.
Do lado de fora, os homens ainda recebiam seus dinheiros. Batiam no peito os vencedores a se gabar: eu tinha certeza de que o morto não faltaria, eu sabia. E os outros riam, faziam volteios antes de pagar. Bebiam muito e agradeciam ao morto pela graça do jogo inusitado, por essa breve alegria em momento tão solene. Levantavam copos e garrafas de cachaça e bradavam a ele, ao morto, a ele que chegou na hora certa como sempre. De lá ouviram o primeiro baque surdo. Prego, martelo, a tampa do ataúde. O homem da prefeitura metia nos pregos no caixão.
Um silêncio redondo foi se formando em volta das marteladas, cada prego entrando na cara do caixão era uma voz silenciada. Os homens voltaram à sala, as mulheres choravam silenciosamente de lenços na mão, a mãe do morto tinha ares de quem iria desmaiar, mas não desmaiava. O morto não sairia. Não saiu, pelo que se sabe.
Pegaram o ataúde pelas alças como se carregassem o morto pelos braços outra vez. Do lado de fora o vento levantava uma poeira de ouro fina que grudava como purpurina no corpo do séquito; o vento tomava volume. Jogava de um lado para outro os muitos coqueiros da rua central até os da praia; as palhas se balançando como quem dança, a copa das árvores e os troncos mais finos endiabrados, rodando, rodando. As nuvens tornavam-se escuras como a testa das ovelhas no dia de cinzas. O povo fazia sinais de cruz e se benzia; as crianças olhavam para cima e tropeçavam na terra, atônitas diante do festival nunca antes visto no céu.
Ameaçava chover. Chover como desde 1965 não chovia. Querenta anos sem chover e agora a tempestade batia na porta e na cara da cidade. Empurrava o morto para adiante. Tanta gente que nunca vira chover em toda a vida frente ao espetáculo que se formava no céu. Na terra, o ataúde seguro pelas alças se balançava em direção a cova rasa. E o povo agora andava em silêncio. O morto impassível dentro do caixão, sem um sorriso, uma lágrima que fosse. Toda a cidade olhava para cima.
Deitaram-no rapidamente na terra e a mãe jogara-lhe os primeiros punhados sobre a cara. Toda a cidade olhava para cima e por muito pouco não o esqueciam de enterrar. O prefeito disse duas ou três linhas mal arrumadas, a mãe lembrou-se de chorar na última hora e os homens da prefeitura jogavam-lhe as pás de terra sem olhá-lo: olhavam para o céu. Os coqueiros dançando endemoninhados. Chuva! chuva!, o prefeito gritou; Decreto oficial, era chuva, como não chovia desde 1965. As crianças correndo para casa e as mulheres chorando ajoelhadas; homens atônitos e a mãe do morte prestes a desmaiar, mas não desmaiava. No meio da chuva a horda enumerava seus gritos de santo! santo! este morto é santo!. E o morto calado deitado na terra, sem pensar em nada.
ALVES. Théo. Quando chegou o morto. In: Concursos literários 2007: premiados 2007. Curitiba/PR: Secretaria de Estado da Cultura, 2008. 120p.
(*) Menção honrosa no evento "Concursos Literários 2007", promovido pela Secretaria de Estado de Cultura do Paraná.
A importância de Machado de Assis um século depois de sua morte
Marcos Leopoldo de Souza
Nem mesmo um século foi capaz de enquadrar o grande romancista brasileiro na alcova do esquecimento, pois o gênios não nasceram para tal, mas para serem perpetuados pelo tempo, através de suas magníficas idéias. O gênio não conhece o limite impõe às suas vidas, antes o aporta, como marco para observar as relações que o coabita e retira, com base nessa observação, o que há de mais universal e concreto nas relações humanas.
Machado de Assis soube representar com tamanha destreza o que há de mais genuíno quanto à gênese estrutural da psicologia humana. Ele, filho de pais pobres, epilético, gago por nascença e possivelmente fadado a passar despercebido pela existência, contra todas as projeções negativas, consolidou-se como escritor de raríssimo talento. O escritor Machado soube analisar com máxima profundidade as virtudes e principalmente os maus hábitos que estão intrinsecos `r condição humana. Não foi um escritor de frases assumadas e desapartadas de reflexão, ao seu crivo nem mesmo ele foi poupado de análises criteriosas. Foi implacável na crítica social, demonstrando em suas personagens adúlteras, inescrupulosas e lunáticas o misto existente em compactação de uma sociedade.
Em um primeiro momento, Joaquim Machado de Assis se deixou guiar pelos apelos e apegos românticos, entretanto, com o amadurecimento literário transfigurou-se, superando o espírito idealista do romantismo e aportou em outro mundo. O mundo do real e do objetivo como sendo o laboratório ideal para testar e refutar suas teses bem como o da construção de suas personagens, no entanto, sem perder a pureza dos grandes escritores, pois estes não estão preocupados em definir padrões sociais, mas apresentá-los como elementos que estão inseridos na sociedade para serem questionados. Machado vai além das cortinas da aparência, disseca-a insinuando o que pode gaver por detrás desta, uma vez que a realidade, que se apresenta aos olhos do expectador, muitas vezes não responde a todos os questionamentos que o espírito humano faz ao mundo, a si mesmo e aos outros. Assim, Machado com seu olho clínico e sua destreza mental demonstrou uma supremacia comparada aos grandes que como tais construíram mágníficos clássicos, pois não deixou que sua obra fosse mascarada, mas sim revelou caminhos que instigavam o leitor à reflexão e até manteve com este um laço muito próximo, sempre buscando acordá-lo do sono que aparenta ser, isto porque o eterno insatisfeito que era, forçosamente não o deixaria nas margens de fórmulas rápidas e simbolicamente prontas.
Pela lucidez que foi capaz de pôr em suas obras e pelo poder de observação que construiu às suas personagens, Machado desbravou e intensificou os detalhes humanos, não como uma linda aquarela que mostra, aparentemente, as cores do que pode ser a imagem, mas como reduto permeado dos mais variados sentimentos e pensamentos eminentes ou objetos. Foi cortante e incrivelmente perturbador, sempre deixou o espírito do leitor semeado de muita inquietação, depositando no mesmo uma insatisfação, que para muitos representa o primor de grandes escritores. Não deixou que o leitor se conformasse como algo puro e detentor de toda verdade porque propôs uma linha descompromissada com definições, antes sugestionou que ele próprio, o leitor, era capaz de encontrar as suas definições.
Enfim, Machado revelou - em suas obras - um mundo não cheio de acasos, mas também recheado de intenções. Portanto, foi um escritor que sintetizou um povo que poderia se ver em qualquer parte do planeta, com todas as virtudes e mazelas. E contribuiu incisivamente para enobrecer a nossa produção literária, uma vez que sua obra transitou pela poesia, teatro, crônicas, contos, novelas e romances com extrema facilidade e expressiva competência. Machado potencializou a produção literária de nosso país e deixou caminhos para que outros encantassem o próximo pela arte da palavra. Certamente, muitos dos que hoje edificaram seus nomes na construção literária foram se molhar e beber nesta fonte riquíssima chamada de mestre da literatura brasileira.
Dessa forma, para as agudas inteligências pouco importa a época para se viver, porque suas idéias são sempre contemporâneas. Por isso que Machado sobrevivu ao tempo, e o filho que antes era, transformou-se no pai de uma produção literária que venceu a barreira convencional do tempo humano, consagrando-se definitivamente no tempo por se fazer sempre contemporâneo.
SOUSA, Marcos Leopoldo de. In A importância de Machado de Assis um século depois de sua morte. Coletânia de Redação para Professores. Academia Brasileira de Letras/Folha Dirigida, set/08. (*) Esse texto ficou entre os 100 mais bem avaliados e teve direito à publicação. Não foi atribuído título, os textos foram feitos com base em um tema, ficando a escolha do gênero livre aos candidatos.
São dois textos realmente de qualidade que enobrecem a minha geração (com todo o orgulho) e justificam as palavras iniciais dessa postagem.
5 comentários:
Talvez a verdade seja que Currais Novos ainda tem muito o que aprender, principalmente sobre os valores da terra. Mas parece que as pessoas se preocupam mais com outras coisas...
Concordo plenamente, Fahad. As pessoas não querem saber de cultura. Isso faz um medo danado!
menino das letras, como está?
eu, feliz por te achar neste mundo virtual e mais feliz ainda por perceber a tua preocupação e, sobretudo, teu carinho em mostrar os novos personagens da literatura currais-novense e, por que não, universal (fui enjoada agora, não fui?!)... concordo, esse povo é mesmo MASSA! iara e wescley (sou super suspeita em falar deles) são mesmo incríveis, a adélia, ô menina pra escrever lindo, o théo, com esse nome de deus, só podia ser mesmo um grande escritor, e o marcos, merece sim essa conquista afinal foi e ainda é um grande admirador das "escritas"...
beijos na alma
com sabor de "vá lá em minha casa-blog menino! tô esperando tua visita!"
luciana
luma
lua
cassildo,
currais novos tem gente muito boa escrevendo... você já listou os nomes e ainda temos grandes figuras como Aldenir e João Antônio, Paulo Herôncio e Francinaldo, Assis Costa... muita gente boa em várias áreas...
um grande abraço e obrigado pela homenagem maior do que eu poderia merecer...
Obrigado pelo comentário, Théo. É um orgulho poder tratar dessas coisas, pois a nossa cidade merece aparecer por elas e não por outras "virtualidades" que só servem a "um punhado de atores" sem compromisso com a cultura.
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